Por estes caminhos antigos
Que a memória revisita
Também já andou, Anita.
Por entre as pedras soladas
Da vastidão de Morrinhos
Palmilhando mil caminhos
De memórias não contadas,
Seguindo à beira da praia
A buscar um lugar distante.
Longe das almas cansadas
E dos olhos dos viajantes.
Onde pudesse despir a alma
Pra que a espuma do mar
Levasse com a corrente
Tantos sonhos de menina.
Não que não sonhasse,
Sonhava tanto também...
Mas o pobre pai tropeiro
Que se fora assim tão cedo,
Lhes deixara sem dinheiro
Sem escora e sem vintém.
A mãe por fim se empregara
Num sobrado de família
Pra tentar ganhar a vida
E fazer casar as filhas,
E fazer casar, Anita.
Que agonia macilenta!
Que sentia, o dia inteiro,
Nessa vívida tormenta
De viver co´sapateiro
Homem morto - acabrunhado
Quando não andava à pesca,
Anda sempre emborrachado.
E lhe buscava meio torto
Com a baba pela boca,
A sorrir com aqueles olhos
Que lhe davam arrepios.
Quanto andou longe de casa
Tentando tirar o asco
Nos longos banhos de rio...
Por estes tempos antigos
Que a memória revisita
Também já chorou, Anita.
Não era menina boba,
Fora criada na luta!
Subindo e descendo serra
- Curtida na vida bruta –
Gritando boi pela encerra
Pra nunca errar a conta,
E era o braço do Bentão
Se o laço soltava a ponta.
No lombo de um gateado
Fazia por merecer,
Tinha a fibra e a coragem
De quem nasceu pra sofrer.
Por ser mulher, se fez guerreira,
Moça guapa e altaneira
Que enfrenta a dificuldade,
Rica mulher brasileira
Catarinense e tropeira,
De sonhos de liberdade.
Por estes campos antigos
Que a memória revisita
Também já tropeou, Anita.
Tio Antonio trouxe as novas,
Emaladas na bruaca
Que a vida do tropeiro
Permitia partilhar.
Logo ali, pelo Rio Grande,
Vinha um exército inteiro
Pra na vila da Laguna
Uma república fundar.
Todo mundo em polvorosa
E o vigário todo prosa
Vai conclamando o povo
A se unir com devoção:
Neste sistema novo
Há lugar pra toda gente,
É um governo diferente
Bem mais justo - e mais cristão.
O sapateiro encachaçado
Grita juras ao Império
E logo corre se alistar.
Mas Anita não se dobra!
Faz da fé sua sentença
E professa sua crença
Na esperança de além mar.
Por estes credos antigos
Que a memória revisita
Também já sonhou, Anita.
Vem o dia assinalado
Há combate em profusão
Há tiro e gritos no forte
Há rastros de dor e morte,
E gritos de revolução.
O império foge ao longe
E o porto é tomado,
Vem no convés do navio
Um capitão-corsário!
Que tem alma de pirata
E um anel de carbonário,
- Olhos azuis de mar -
Que faíscam como raio,
Camisa vermelho sangue
Sob um poncho uruguaio.
E Anita desce a estrada
Pra buscar água na fonte,
Sem saber que era vista
Pelos olhos cor de mar
Do olhar do capitão.
O italiano segue a amada
Que cruza pela ponte
Até lhe perder de vista,
No arredor de alguma casa
Oculta na imensidão.
Desce a bote, pela praia,
Pra correr pelas calçadas
Buscando a jovem morena
Que lhe deixara sem ar.
A vê em pé junta à porta
Numa casa tão singela
E tão cheia de esplendor...
O corsário de vereda se apequena
É agora prisioneiro da morena,
E o coração é tomado pelo amor.
Por estes versos antigos
Que a memória revisita
Também já amou, Anita.
Duzentos anos da história
Se alargaram no horizonte
Trazendo novos preceitos
E novas ideologias...
E o exemplo de Anita
De lutar por igualdade,
De romper os preconceitos
Faz eco todos os dias,
E inspira as mulheres
Na busca por seus direitos.
Pra esta jovem de Laguna
Que lutou na Mortandade
E enfrentou em Mostardas
A vilania sem perdão,
Há uma herança de glórias
Nas memórias populares
E nos feitos de bravura
Ombreando o Capitão.
Em cada mulher sofrida
Que enfrenta a violência
Que reage ao abuso
E não teme o agressor,
Há uma Anita viva!
Que renasce a cada dia
Nos caminhos desta vida
De quem vive, pelo amor.
Pelos caminhos esquecidos
Que o Rio Grande ressuscita
Também já andou, Anita.