Guilherme* mirou o chão,
buscando no frio da cela
um fiapo de esperança...
Sentia o peso da algema
e o vazio da escuridão.
E na cabeça latejando,
a marca do torniquete
que o delegado aplicou.
Delegado... Que delegado?
Era mais um mandalete,
daqueles meio-bandidos.
Um jagunço cor de cuia,
de cicatriz na cara
que traz a morte no olhar.
Sentiu o fio de sangue, que se espalhou no rosto e desceu pela camisa,
onde não havia espaço para uma gota sequer.
O causo não era jogo, nem intriga de milico,
muito menos mesmo borracheira ou por causa de mulher.
A acusação era pesada.
Lhe chamaram de ladrão!
Logo ele que era honesto,
que jamais deu de mão,
no que não era seu.
Talvez a cor da pele,
que tanta agrura lhe trazia,
trouxesse mais amargura,
nessa vida entristecida,
e a seu modo, tão vazia.
Levantou os olhos mornos,
a mirar pela janela,
para o céu além da cela,
onde a pele preta da noite,
se distinguia da sua,
que agora “apurpurou”.
E os braços retesados,
afivelados nas costas,
vão aos poucos lacerando,
como se fosse uma canga,
de boi que morre no arado
servindo na judiação.
Guilherme não sente a boca,
só o sangue na garganta.
E o sofrimento jungido,
nas horas de tempestade
onde a pergunta repetida,
lhe furava como punhal:
“Onde está o cavalo?
Responde negro bandido!”
Uma volta do torniquete,
e meia dúzia de pancadas.
“Onde está o cavalo?
Fala logo negro imundo!”
Outro giro na madeira,
e um laçaço na paleta.
“Fala onde escondeu o cavalo!
Negro desgraçado!”
E a espiral da dor se espalha,
pela mente, pelo corpo,
pelos olhos, pela alma,
fazendo da própria morte,
uma promessa suave
a acenar no horizonte,
perdida na escuridão.
- O delegado já respira pela boca. -
Um calor sufocante envolve a cela.
O suor lhe escorre nas costelas,
e desce pelas fraldas
da camisa de algodão.
“Eu mato e esfolo esse negro, mas não deixo vivo, mais um ladrão”.
Dali a pouco cansou o braço.
Cansou a mente também.
E cansou um pouco a alma,
da ruindade que fizera.
Mas só por um momento...
Precisava de alento
para seguir na obrigação.
E foi fumegar um palheiro,
daqueles bem enrolados,
pra beber com a purinha
que guardava no balcão.
Guilherme voltou no tempo,
agora preso em memórias,
buscando velhas histórias
para um conforto final.
Do tempo em que foi tropeiro,
levando tantas cabeças,
trazendo tanta riqueza,
sem jamais perder a conta,
de uma rês ou um vintém.
Depois virou posteiro,
capataz e peão de lida,
alambrando as invernadas,
engordando tropas na encerra
e nas matas de pinheirais.
Prestando sempre as contas,
das terças ou da meia,
empreitada com o patrão.
De uma vez foi na cidade,
pra buscar um pagamento
que viera num alforge
com trinta contos de réis!
E não vendeu por um momento,
nem mesmo em pensamento,
a própria honestidade
que a vida osca lhe deu.
Era o negro “das confiança”,
de fama no vizindário,
pra casa e do patrão.
O patrão...
Moço que foi tropeiro,
na mesma comitiva
onde ele próprio começou.
Que era moço direito.
Órfão de pai, cedo.
Virou o mundo do avesso,
pra dar sustento pra mãe,
e pra família que ficou.
E que vergonha do moço,
se lhe visse desse jeito,
no estado de penúria
que o delegado deixou.
Chorou um choro triste,
tapado de humilhação.
Se tivesse um cavalo, uma tropilha,
uma estância...
Teria dado tudo,
pra jamais ser acusado
de bandido ou de ladrão.
Mas era só um negro,
que a palavra nada vale,
e que vive a dor pungente
da eterna escravidão.
Ao longe ouviu passos,
e palavras de pesar.
Um murmúrio agitado,
um grito de autoridade
e a voz grave e sincera
de quem aboiou esperas,
ao longo do corredor.
Aquela voz conhecida,
que escutou por toda vida,
ergueu a fronte sofrida
com a marca do torniquete
a luzir na escuridão.
O patrão e o intendente,
a exigir do delegado,
que fim dera ao acusado,
e à própria inquirição?
Dali ganhou o mundo,
acudido pelo moço,
que tantas vezes na vida,
ele mesmo viu sofrer.
E deu graças a Deus,
que mesmo sendo inocente
teve assim quem ofertasse,
um testemunho de valor,
pra que pudesse viver.
Os autos da inquirição,
andam assim alargados.
Quantos são presos no mundo,
quantos são condenados?
E quantos são inocentes,
a pagar por cada crime,
se a pena não redime,
por que foram injustiçados?
Os autos da inquirição,
continuam no presente
culpando tanta gente,
à espera de revisão.
E a injustiça soberana,
segue prendendo o negro
que morre à mingua na cela,
por falta de compaixão.
*Guilherme Corrêa foi preso nos idos de 1945, na cidade de Curitibanos (SC), acusado de roubar um cavalo. Foi torturado por vários dias, até ser inocentado pela intercessão de um amigo. Morreu aos 101 anos, e ainda mantinha o galo na testa, com a marca do torniquete.
