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Veio da origem dos dias

Do tempo antes da vida

Da velha era esquecida

Quando o Rio Grande nascia,

Bem antes das sesmarias

Dos gaudérios e estradeiros,

E foi o marco derradeiro

Entre a serra e o altiplano

Apartando meridianos

No garrão sul-brasileiro.

 

Na aurora entre selvagens

– Kaingangs, Guaranis –

Que habitavam por aqui

Na imensidão das paragens,

Pode entrever as viagens

do primitivo rincão,

e foi esteio e proteção

Das tribos abarbaradas

Em cada toca escavada 

E improvisada pelo chão.

Depois se fez alambrado,

Cerca tosca e primitiva

Que a velha raça nativa

Erigiu num descampado,

E à sombra dos copados,

Banhados e pastiçais,

Entre os relevos naturais

Se fez tapume missioneiro

Do jesuíta pioneiro

Na "Baqueria dos Pinhais".

 

Mais tarde na ocupação

Das serranias abertas

Riscando a fronteira incerta

Entre o planalto e o sertão,

Foi sinal de divisão

Das bandeiras paulistanas,

Na conquista cartersiana

De outras linhas divisórias,

Pra marcar Santa Vitória

E a Coxilha lageana.

 

Dali viu as comitivas

Que Dom Cristóvão empeçou

E a estrada que se formou

Na velha terra nativa,

Dali mirou o biriva

De mulas e até de gado,

Tropeando um futuro alçado

Em cada ronda esquecida

E aboiando a própria vida

Para além do nosso Estado.

 

Por quase duzentos anos

Viu a marcha do progresso

Ofertando ponte e acesso

Para os campos vacarianos,

E quando os caminhos serranos

Se abriram em alvorada,

Já andava cercando estradas Dispensando os fiadores,

Pra formar os corredores

Das primitivas tropeadas.

 

Ali cruzaram campeiros

Com o laço a bate-cola,

Um guri pra ir à escola

E tantos chasques ligeiros,

E a odisseia dos tropeiros

Que molda a vida serrana,

No retinir da campana

De Viamão a Corytiba

Seguindo Brasil arriba

Pra feira sorocabana.

 

Viu ali passar Anita

No rastro de um italiano,

E o Rio Grande soberano

Em cada guerra maldita,

Viu o Capitão que se agita

Pra vingar um desacato,

E o gaúcho intemerato

Alçando a perna na história

Lavado de sangue e glória

Nas lutas dos maragatos.

 

Um dia o tropeiro partiu

E veio asfalto e cimento

E o motor mais barulhento

Que o homem já produziu,

E logo a terra se viu

Cercada de lado a lado,

De um cambará cravado

Que perdeu copa e raiz,

Pra dar vida à cicatriz

De cerne e aço farpado.

 

Ficou largada no campo

Perdendo a própria razão,

Escorando algum moirão,

Cancela ou cerca de grampo,

E viu a luz dos pirilampos

E do próprio firmamento

Sucumbir ao alumbramento

Da nova eletricidade

E dos postes da cidade

Nas ruas de calçamento.

 

Um dia sentiu novamente

As mãos de outro campeiro,

Rumo ao destino taipeiro

Que lhe deram finalmente,

E se fez marco silente

No velho campo proscrito,

Como um altar de granito

Em sua última missão,

Escorando o varejão

Da Sesmaria do Infinito.

 

Quando cruzo essa cancela

E miro a pedra do passado

O Rio Grande abarbarado

Ressurge por dentro dela,

E uma visão se revela

Para o final da existência,

Quando mesclar minha essência Nessa forma duradoura,

Serei eu mesmo, pedra-moura

Com a alma da querência.

* A Sesmaria do Infinito é um espaço no Parque da Harmonia, em Porto Alegre, cedido à Estância da Poesia Crioula, aonde se reverencia os poetas que já partiram para outro plano. Há no local uma pedra de 7 toneladas, designada de Pedra da Memória, e uma cerca de varejão simbolizando a cancelas de passagem deste para um outro mundo.

Anualmente neste local, acontece a Romaria da Saudade, onde os membros da Estância da Poesia Crioula prestam culto aos vates que já partiram.

CANTO E REGISTRO PRA QUEM FOI ESPERA

Osmar Antonio do Valle Ransolin

Vencedora do Concurso 
de Poesias da Estância
da Poesia Crioula
2024

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