Um corpo tombou no campo
revolvendo a polvadeira
onde a sombra se estendeu.
Restou um silêncio morto
entrecortando a cigarra
nas japecangas em flor.
De longe se ouviu o bufo,
e um gemido sufocado,
como um esgar de agonia,
tremulando pela dor.
E ali ficou...
Maldita pressa peregrina!
De voltar de pronto ao rancho
antecipando caminhos
pela invernada do fundo
onde ninguém há de cruzar.
Campo e céu por testemunha,
das intempéries da vida
que derrubam a massa bruta,
num arranco ensimesmado
sem ter hora pra chegar.
E na mirada assim de longe,
não se achava pela volta,
motivo, razão ou causa,
pra esta ronda redonda
que hoje chegou ao fim.
Alguns sinais alambravam
as porteiras das retinas
que ficaram escancaradas,
como a buscar pela vida
que num disparo de tropa,
se foi, pra não voltar.
E por ali num atropelo
passaram amor e sonho
no mesmo tranco sereno,
buscando novos caminhos
como quem cruza o corredor.
Foi-se a alma à bate-cola
enrodilhada na marca
que o tempo gravou no couro
do corpo que se planchou.
A melena encanecida,
os dedos grossos crispados
e o semblante horrorizado,
de quem percebe a existência
no limiar do seu fim.
Dando conta que o passado,
não é esteio pra o futuro
e que o ciclo longo das eras
antecipou a espera,
de quem se gastou na vida
sem provar o seu sabor.
Nos bolsos alguns sinais
de uma carga apresilhada
que nunca há de chegar
ao seu destino final.
Uns caramelos pros guris,
meia dúzia de cruzeiros
e uma fita pro cabelo da chinoca
que vai amargar lembranças,
nesses soluços tristonhos
que as viúvas sabem bem.
Um naco de fumo em rama,
a palha bem afilada,
e a caixinha de pau-fogo
que ficou despedaçada.
O chapéu voou ao longe
como querendo avisar
nas aflições do rancho
que o homem velho tombara
no seu retorno sem fim...
E que deixara tanta coisa
pra resolver pelo mundo,
que as misérias da existência
se espalharam pelo campo,
pontilhando a invernada
coberta pelo capim.
A intriga com o compadre,
a letra* que não foi paga,
um tapa no gurizito,
e uma resposta mal dada
que tirou dos olhos da prenda
a alegria de viver.
Coisas que ficam perdidas,
mas que na hora da partida
culatreiam a própria vida
que está prestes a findar.
Agora, nada importa.
Nem o tempo, nem dinheiro,
nem ódio ou ambição.
O sentido da existência,
se espicha junto ao corpo
que ora jaz desenterrado
pelo campo, ao rés do chão.
No velho compasso do mundo,
o corpo já nada vale,
e vai perecer aos poucos
mesclando campo e gaúcho,
neste jujo campeiro
da origem da Criação.
Até que nada exista
- Apenas um fio de memória -
entremeado à trajetória,
de alguém que foi do mundo
muito mais que um par de mãos.
Um corpo tombou na estrada
levantando a polvadeira
onde a essência se perdeu,
e cá seguimos pensando
que se hoje caiu o velho
pelo andejar da vida
amanhã talvez, seja eu...
*No interior, era comum o povo chamar antigamente a promissória de “letra de câmbio”.
